“Nos bastidores da aviação, onde os passageiros apenas veem o brilho da promessa de um destino seguro, os tripulantes enfrentam uma realidade muito diferente. Entre os céus e as nuvens, um mundo de segredos obscuros, sexo, drogas e traição molda a rotina de muitos daqueles que vivem no limite. A vida dentro das aeronaves e nos aeroportos não é apenas sobre voos, mas pode ser sobre um jogo de poder implacável, onde a moralidade e o desejo se confundem.
Em cada voo, em cada parada, a linha entre o certo e o errado às vezes se torna mais tênue, e a confiança é apenas uma ilusão. À medida que as histórias de vida e morte se entrelaçam no ar, alguns tripulantes se veem obrigados a fazer escolhas arriscadas que podem mudar suas vidas para sempre. Entre os riscos da profissão e os segredos que os envolvem, a jornada não é só pelo mundo, mas também pelos lados mais sombrios da alma humana. Prepare-se para embarcar em uma história onde o perigo está sempre à espreita e o lado escuro da aviação é revelado como nunca antes.”

Capitulo 1
REGRAS NÃO ESCRITAS
Existem três verdades que você aprende rápido quando entra na aviação. E não, não estão nos manuais, nem são ensinadas nas salas de treinamento da companhia. São regras invisíveis, passadas de boca em boca nos corredores de hotel, cochichadas nas vans de traslado, ou sussurradas nos galpões de manutenção enquanto o mundo dorme.
1- O avião sempre vai decolar, mesmo quando a tripulação está por um fio — emocional, físico ou moral.
2- Se alguém diz que nunca traiu em um layover... provavelmente está mentindo — ou esqueceu.
3- E a mais importante de todas: nunca, jamais, mexa com o ego de um piloto.
Porque nessa profissão, o céu pode parecer infinito — mas o orgulho de um comandante é ainda maior.
E foi exatamente por causa disso que um deles terminou morto.
Meu nome é Rafael Duarte. Mas quase ninguém me chama assim. Na aviação, a gente perde o nome e ganha um crachá. Vira sobrenome, matrícula e ranking de horas voadas.
Eu sou Duarte. Só Duarte.
E essa história não é só sobre mim.
É sobre o que acontece quando o fardo do uniforme começa a pesar mais que as asas bordadas no peito. Sobre o lado escuro dos que passam a vida cruzando céus, mas carregam tormentas por dentro. Uma história onde o luxo e a degradação dividem o mesmo banco do jump seat, onde a fidelidade é um conceito frágil, e a altitude só serve pra esconder o que não se quer encarar no chão.
——— ———
O aeroporto pulsava. Passageiros apressados cruzavam corredores brilhantes arrastando malas, vozes ecoavam pelos alto-falantes, e o cheiro de café fresco misturava-se ao aroma ácido de querosene — o perfume cotidiano de quem vive entre terminais.
Era mais um dia no coração da aviação: tenso, organizado no caos, silenciosamente à beira do descontrole.
O Voo Noturno:
Algumas semanas antes do incidente no finger, Monteiro e Castilho dividiram a cabine de um voo noturno entre São Paulo e Buenos Aires. A escala tinha sido alterada de última hora — e quando a mudança caiu no sistema, todo mundo percebeu o detalhe que ninguém ousava comentar: os dois comandantes veteranos, conhecidos por uma convivência protocolar e olhares que evitavam se cruzar, teriam que voar juntos.
Não havia entusiasmo. Nem reclamações.
Só um silêncio incômodo que, na aviação, costuma ser mais barulhento do que gritos.
A preparação começou ainda no briefing, onde os dois chegaram com minutos de diferença e trocaram um cumprimento seco, sem sorriso.
Castilho usava o uniforme como quem veste um figurino — impecável, mas com um certo desleixo calculado.
Monteiro, por outro lado, parecia saído de um manual: postura ereta, barba feita com precisão militar, olhos firmes.
Na sala de despacho, o clima já era espesso.
Castilho assobiava uma melodia irritante — algo entre bossa nova e deboche.
Monteiro, sentado de frente para os documentos do voo, mantinha a atenção nas instruções com uma rigidez quase artificial.
Ele não respondia aos assobios, mas o maxilar travado entregava o incômodo.
Castilho folheou o plano de voo e franziu as sobrancelhas, puxando conversa do jeito mais passivo-agressivo possível:
— Vai mesmo seguir essa rota aqui? — perguntou, apontando com a tampa da caneta para o desvio traçado no plano.
Monteiro respondeu sem tirar os olhos da prancheta.
— Sim. É a mais segura, considerando o tráfego e o METAR de Córdoba.
— Segura, mas lenta. A gente perde uns bons minutos com esse desvio. Se a gente ousasse um pouco...
— Aqui não é lugar pra ousadia, Castilho. É lugar pra bom senso.
A frase caiu como uma porta se fechando.
Curta, seca e definitiva.
A chefe de cabine, uma mulher experiente chamada Arlete, entrou com uma garrafa térmica na mão, mas parou na porta ao sentir o clima.
Nenhuma palavra foi dita — ela apenas pousou o café com cuidado na mesinha e se retirou como uma sombra.
——— ———
A decolagem foi tecnicamente perfeita.
Como se ambos estivessem determinados a provar que, apesar do rancor mútuo, profissionalismo ainda era o idioma comum.
Mas dentro da cabine, o silêncio era de chumbo.
Durante o cruzeiro, com a aeronave estabilizada a trinta e sete mil pés, Castilho se remexeu na cadeira, abriu uma garrafinha de água e quebrou o gelo com a pontualidade de um sabotador emocional.
— Sabia que encontrei a Helena no lounge outro dia?
Monteiro demorou alguns segundos antes de girar lentamente a cabeça.
Os olhos ainda fixos à frente, como se tentassem ignorar o que o cérebro já processava.
— Espero que tenha sido uma conversa breve.
Castilho riu, aquele riso baixo, carregado de provocação.
Era o riso de quem está prestes a empurrar alguém do penhasco, só pra ver se a queda faz barulho.
— Ela ainda lembra do seu perfume.
Monteiro não respondeu.
Mas apertou o manche com mais força do que o necessário.
Os nós dos dedos ficaram brancos.
A cabine estava escura, apenas os painéis iluminavam os rostos dos dois como lanternas numa cena de interrogatório.
Naquele momento, ficou claro: aquele voo não era apenas um trecho noturno entre dois países vizinhos.
Era o ensaio de uma guerra pessoal.
O primeiro ato de um duelo que ultrapassaria qualquer altitude.
E ninguém ali, nem mesmo o ar rarefeito, seria capaz de evitar o impacto.
O Confronto no Finger:
Foi ali que duas das regras não escritas da aviação se manifestaram com violência:
O avião sempre decola. E pilotos não perdoam.
A manhã era clara, mas o finger parecia um túnel mal iluminado.
O sol não alcançava direito aquele corredor de metal e vidro, e o ar-condicionado soprava com preguiça.
Os painéis indicavam o portão de embarque, passageiros começavam a se aglomerar e os tripulantes seguiam sua coreografia habitual — aqueles rituais silenciosos de quem já viveu tudo e ainda precisa repetir mais uma vez.
Mas naquele canto, entre a cabine e o terminal, um duelo antigo preparava seu desfecho.
Monteiro e Castilho estavam frente a frente.
Dois comandantes de uniforme impecável, sapato lustrado, postura firme.
Mas os olhos... os olhos não mentiam.
Olhos de predadores.
Olhos que tinham deixado a diplomacia no armário do hotel.
Duarte, que observava a cena de longe, sentiu o estômago revirar.
Sabia que algo estava prestes a acontecer.
O ar estava denso.
Ninguém dizia nada, mas todos sentiam.
Castilho encostou-se levemente à parede do finger, braços cruzados, sorriso de canto.
Parecia à vontade — como se aquilo tudo fosse um jogo que ele dominava.
Já Monteiro mantinha os punhos cerrados ao lado do corpo, os ombros tensionados, e uma veia pulsando no pescoço como se fosse explodir a qualquer segundo.
— Eu já te avisei pra ficar longe da Helena, seu canalha — rosnou Monteiro, com a voz baixa, controlada, mas embebida de raiva.
Aquelas palavras não eram apenas uma ameaça. Eram uma sentença.
Castilho inclinou a cabeça, como quem ouve algo curioso vindo de um idiota.
— Não sei do que você está falando — respondeu, com ironia preguiçosa.
— Mas se ela me dá atenção, talvez o problema não seja eu.
E então veio o golpe.
Rápido. Direto. Quase limpo.
O soco de Monteiro acertou em cheio o maxilar de Castilho, fazendo sua cabeça girar para o lado.
O som do impacto foi seco, forte, como madeira rachando.
Castilho cambaleou, recuou dois passos, e esbarrou no carrinho de serviço que uma comissária empurrava, derrubando copos plásticos, sachês de açúcar e a dignidade de qualquer cerimônia que restava.
O corredor congelou.
Passageiros se entreolhavam em choque, alguns levantando os celulares, outros apenas boquiabertos com a surrealidade da cena.
Um comandante espancando outro no finger durante o embarque.
Era o tipo de história que viraria fofoca em cada tripulação do país antes da noite cair.
Monteiro respirava fundo, como um touro prestes a atacar de novo.
Castilho, ainda com a mão na boca sangrando, levantou os olhos com o mesmo sorriso de antes, só que agora tingido de vermelho.
— Que bela forma de demonstrar controle emocional — disse, cuspindo um filete de sangue no chão com desprezo.
Dois mecânicos que estavam próximos à aeronave correram para intervir.
Um deles, chamado Yuri, era baixinho, mas tinha braços de estivador.
Agarraram Monteiro pelos ombros e o afastaram com força, enquanto a comissária Arlete tentava conter Castilho, que, para espanto geral, ainda ria.
O silêncio que veio depois era quase ensurdecedor.
Era o silêncio das consequências.
O tipo que chega antes dos relatórios e das sindicâncias.
Um silêncio que carrega o peso do que não pode ser desfeito.
Mas o pior ainda estava por vir.
No Escuro do Estacionamento:
Três dias depois da briga no finger, o reencontro.
Dessa vez, sem público.
Sem uniformes.
Sem regras.
Era noite.
O estacionamento do aeroporto estava quase vazio, iluminado apenas por postes altos com lâmpadas que falhavam como corações cansados.
Carros parados em fileiras, o som distante de um avião decolando e o cheiro de chuva antiga no concreto.
Um cenário melancólico, perfeito para um ajuste de contas.
Monteiro caminhava com passos pesados, o zíper da jaqueta subindo e descendo com o movimento dos ombros tensos.
Castilho o esperava encostado em seu carro esportivo, cigarro aceso entre os dedos, como quem marca território.
Não havia pressa no olhar dele.
Apenas aquela confiança arrogante de quem acha que já venceu — e quer ver o inimigo confirmar com a própria boca.
— Vai tentar me bater de novo, Monteiro? — disse, sem tirar o cigarro dos lábios. — Ou vai aceitar que a Helena não te quer mais?
Monteiro não respondeu.
As palavras já não bastavam.
Ele avançou.
A briga que se seguiu foi crua, sem coreografia.
Não era cena de filme.
Era ódio acumulado, frustração velha e dor não resolvida.
Socos trocados como insultos.
Empurrões que carregavam meses de silêncio e noites mal dormidas.
Um chute que não acertou.
Um cotovelo no rosto.
Um palavrão entre os dentes.
O som dos punhos batendo na pele era abafado pelo vento, mas ecoava alto dentro de cada um deles.
Quando finalmente se afastaram, estavam machucados, sujos, arfando como cães de briga.
Monteiro sangrava na sobrancelha.
Castilho, com um corte na boca e um roxo crescendo na mandíbula, ainda sorria — mas dessa vez, o sorriso tremia.
Nenhum dos dois disse mais nada.
Não havia vencedores ali.
Só feridos.
E mesmo assim, ambos sabiam:
aquela seria a última vez.
Porque o que vinha a seguir...
não era mais terreno para brigas.
O Último Pouso:
Dias depois, Monteiro enfrentaria seu último grande teste nos céus.
Um voo vindo de Recife, com 130 passageiros, programado para pousar em Brasília.
Tudo parecia normal até os últimos vinte minutos da aproximação, quando os alarmes começaram a piscar.
Falha no trem de pouso dianteiro.
A torre fez contato imediatamente.
— Comandante, checar se o trem está baixado e travado. Recomendamos órbita, ou até confirmação visual.
Na cabine, o copiloto — jovem, tenso — lia os procedimentos de emergência com a voz firme, mas os olhos denunciavam medo.
Monteiro manteve a calma.
A voz dele, quando falou ao interfone, era como uma âncora:
— Vamos fazer uma passagem baixa. Preciso de visual da torre.
Lá embaixo, caminhões dos bombeiros já cercavam a pista.
Equipes de solo interromperam operações em outros fingers.
Passageiros, mesmo sem entender o que acontecia, começaram a sentir a vibração da tensão no ar.
Uma mulher começou a rezar.
Um homem, de terno e gravata, fechou os olhos e agarrou a aliança.
No cockpit, Monteiro respirava fundo.
Suava.
Mas não tremia.
Quando o copiloto perguntou se queria assumir, Monteiro respondeu com um simples:
— Já estou no controle.
A aeronave sobrevoou a pista a poucos metros, como um pássaro hesitante.
A torre confirmou: o trem dianteiro não estava travado. Era um risco real.
A decisão foi rápida, calculada, brutal:
— Vamos pousar assim mesmo. Manter o nariz suspenso até o limite. Depois, seja o que for.
Os minutos seguintes pareciam durar horas.
O rádio em silêncio.
O avião descendo com precisão cirúrgica.
O mundo do lado de fora observando em suspense.
As rodas traseiras tocaram a pista primeiro.
O nariz foi mantido no ar o quanto deu.
A fuselagem tremia.
Faíscas começaram a se formar sob o ventre da aeronave.
Um som de metal raspando no asfalto cortou o ar.
E então... o avião parou.
Intacto.
Lá dentro, o silêncio foi quebrado por aplausos nervosos, lágrimas contidas, gritos de alívio.
Os comissários se entreolharam, ainda tentando processar.
Na cabine, Monteiro desligou os sistemas com movimentos lentos.
Seus dedos tremiam agora.
Não pelo medo.
Mas pelo esgotamento.
Quando saiu da cabine, sua postura ainda era a de um comandante.
Coluna reta, passos firmes.
Mas nos olhos... havia algo que ninguém conseguia nomear.
Talvez fosse cansaço.
Talvez fosse entrega.
Talvez fosse o pressentimento de que aquele tinha sido seu último voo — mesmo sem saber ainda.
A Curva e o Silêncio:
Depois do pouso de emergência, Monteiro parecia mais calado que o normal.
Não dava respostas longas, evitava os colegas no saguão e falava pouco até no grupo de pilotos.
Ninguém questionou.
Na aviação, silêncio não é mistério — é rotina.
Mas então, veio a notícia.
Monteiro estava morto.
O acidente aconteceu numa madrugada qualquer, na BR-060, trecho escuro, pouco sinalizado, entre Goiânia e Brasília.
Chovia leve, a pista escorregadia, e o carro saiu da curva como um avião em perda.
Bateu contra um barranco e capotou duas vezes antes de parar de lado.
Os bombeiros estimaram que ele morreu na hora.
Sem chance.
Sem pedido de socorro.
Sem despedida.
Nos grupos de WhatsApp da aviação, a informação chegou entre mensagens de escala e memes do dia.
Ninguém soube direito como reagir.
Alguns mandaram emoji de vela.
Outros perguntaram se era verdade mesmo.
Teve quem disse: “Sabia que ele andava estranho.”
E teve quem preferiu não dizer nada.
Nos corredores das bases da empresa, o luto era discreto, quase técnico.
Mas nos olhos dos mais próximos, dava pra ver o abalo.
Porque Monteiro não era só mais um.
Era um dos bons.
Era aquele que sabia pousar na mão e manter o sangue frio enquanto todo mundo tremia.
Era arrogante, sim.
Mas ninguém virava comandante daquele nível sendo simpático.
——— ———
A cerimônia de despedida aconteceu numa manhã chuvosa em Brasília.
Salão frio, fileiras de cadeiras organizadas com rigor militar.
Uniformes alinhados.
Olhos vermelhos.
Colarinhos úmidos.
E então, ela chegou.
Helena.
De preto, discreta, cabelo preso, lenço no pescoço.
O uniforme civil parecia pesar mais do que o da companhia.
Seus passos eram lentos, mas firmes.
E quando ela entrou, o salão silenciou por instinto.
Todos sabiam quem ela era.
E sabiam também que aquele enterro carregava mais do que dor.
Carregava memórias que muitos fingiam não lembrar.
Ela parou diante do caixão fechado, pousou a mão sobre a madeira e fechou os olhos por alguns segundos.
Não chorou.
Mas os ombros denunciavam.
Era uma dor contida, orgulhosa, daquelas que não pedem consolo porque sabem que ninguém entenderia.
No fundo da sala, entre outros uniformes, Castilho observava.
Tinha tirado o boné, deixado o paletó no carro.
Estava sério.
Ajeitava as mangas da camisa com um tique nervoso que ele não percebia.
Não se aproximou.
Mas Helena o viu.
Ela o viu.
Os dois se olharam.
E naquele olhar havia tudo: mágoa, passado, vergonha, desejo contido e um cansaço que não vinha do sono.
Foi só um segundo, mas tempo o bastante para reacender uma história que, até então, parecia enterrada com Monteiro.
Conversas Que Não Deviam Acontecer:
Os dias seguintes passaram como fumaça em dia nublado.
Helena voltou à rotina, ou pelo menos fingiu.
Escala reduzida, folgas acumuladas, mensagens de colegas oferecendo ajuda que ela agradecia com respostas curtas.
Ela não era de expor.
Nunca foi.
Dormia mal.
Comia pouco.
Ligava a televisão e deixava no volume mínimo só pra não ouvir o próprio silêncio.
Às vezes sonhava com Monteiro.
Às vezes, com nada.
Mas o que mais doía era quando acordava no meio da madrugada e tinha a sensação de que ele ainda estava no banheiro, ou na sala, ou lendo alguma coisa no celular antes de dormir.
Foi numa dessas noites que ela respondeu a mensagem de Castilho.
Ele havia mandado algo simples, dois dias após o enterro:
— “Se precisar conversar... estou por aqui.”
Helena demorou.
Viu a mensagem e ignorou.
Viu de novo, e continuou em silêncio.
Mas naquela madrugada, com o corpo cansado e a alma entorpecida, digitou:
— “Tenho pendências do seguro pra resolver, me ajuda?”
Castilho respondeu em dois minutos:
— “Quando quiser.”
O primeiro encontro foi no saguão de um hotel perto do aeroporto.
Ambiente neutro.
Público o suficiente pra não parecer escondido, mas discreto o bastante pra ser o que era:
um lugar onde o que não podia ser dito encontrava espaço.
Ela chegou pontual.
Ele, cinco minutos antes.
— Obrigada por vir — disse ela, sentando-se de frente.
— Achei que você não responderia.
— Também achei.
A conversa foi objetiva.
Assinaturas, documentos, valores do seguro de vida.
Mas a mesa parecia carregada demais pra caber só papelada.
A certa altura, os dois silenciaram.
E ficou claro que aquilo não era só sobre Monteiro.
— Você acha que ele... sabia? — perguntou ela, sem encarar.
Castilho demorou pra responder.
Enrolava o papel com os dedos.
— Monteiro sabia de tudo. Só não queria aceitar.
Helena assentiu.
E aquele foi o fim da conversa naquele dia.
Mas não foi o fim deles.
Nenhum Céu Aguenta Tudo:
Vieram outras mensagens. Mais curtas, mais humanas.
— “Conseguiu descansar?”
— “Como está o processo da companhia?”
— “Vi que sua base voltou a operar voos pro Norte. Tá puxado?”
Pequenas aberturas.
Portas entreabertas por onde a dor escorria, misturada com saudade, raiva, desejo e confusão.
Os encontros mudaram de lugar.
De hotéis, passaram a cafés discretos.
Depois, jantares em dias de folga.
Cada passo dado com o cuidado de quem sabe que está atravessando uma ponte frágil demais pra correr.
Mas o que era apoio emocional virou algo mais.
Porque o vazio que Monteiro deixou não era só doído — era vivo.
E Helena, mesmo sem querer, foi se inclinando pra perto de Castilho.
Talvez por conforto.
Talvez por carência.
Talvez porque, no fundo, os dois sabiam que aquilo já existia antes.
Só faltava um pretexto.
Nas semanas seguintes, os encontros ficaram mais frequentes.
Não havia declarações.
Nem planos.
reconhecida — mas não mencionada.
Helena sabia o que estavam fazendo.
E odiava o fato de que não conseguia parar.
Castilho, por outro lado, parecia aceitar a contradição com mais facilidade.
Talvez por ego.
Talvez por necessidade.
Talvez por arrependimento.
Ela buscava consolo.
Ele, redenção.
E nesse acordo sem palavras, encontraram um lugar onde a solidão não gritava tanto.
Até que, três semanas após o enterro, numa manhã abafada em Goiânia, Helena sentiu algo diferente.
Uma tontura leve.
Um enjoo seco, repentino.
O café parecia amargo demais.
E o cheiro do pão a incomodava.
Não era cansaço.
Nem estresse.
Ela sabia.
Comprou o teste em silêncio, voltando pra casa com os óculos escuros mesmo sob o teto nublado.
Fez tudo como quem cumpre um protocolo: porta trancada, banheiro fechado, instruções seguidas à risca.
Dois riscos.
Grávida.
Ela sentou no chão frio do banheiro.
Não chorou.
Não sorriu.
Apenas ficou ali, com o teste na mão e a mente em branco.
O filho não era de Castilho.
Era de Monteiro.
E aquilo mudava tudo.
Reflexo de verdades:
Diante do espelho, encarou o próprio rosto como se esperasse ver outra mulher ali.
Mas era ela. Helena.
Cabelos presos. Olheiras fundas.
E um peso novo no ventre — e na alma.
Nos seus olhos, viu os dois homens que marcaram sua vida.
Um já não estava mais aqui.
O outro... talvez nunca tivesse realmente chegado.
Depois de longos minutos, pegou o celular. Digitou sem rodeios:
— “Precisamos conversar.”
Um Nome Para o Silêncio:
Helena não contou tudo a Castilho de uma vez.
Esperou.
Precisava ter certeza — do teste, do tempo, e de si mesma.
Quando finalmente se encontraram num restaurante discreto, ela não sorriu.
Nem explicou.
Apenas colocou o teste sobre a mesa, sem palavras.
Ele olhou por alguns segundos.
Engoliu seco.
Tentou manter a compostura.
— É... do Monteiro?
— É.Silêncio.
— Vai tirar?
— Não.
— Vai me excluir?
— Também não.
— Vai dizer pra todo mundo?
— Só pra quem precisa saber.
Ele assentiu.
Bebeu um gole da água que já não estava gelada.
Não pediu sobremesa.
Nenhum dos dois comeu o prato principal.
O Nascimento:
Renato Monteiro nasceu numa manhã nublada de junho, no Hospital Santa Joana, zona sul de São Paulo.
O céu parecia conter a chuva por respeito.
Helena escolheu o parto normal.
Recusou anestesia.
Queria sentir tudo — a dor, o corte, o peso, a vida.
Porque algumas dores precisam ser atravessadas por inteiro.
Sem atalhos.
Quando ouviram o choro, ela não chorou.
Apenas encarou o teto branco como se esperasse por um sinal que nunca veio.
O médico perguntou:
— Já tem nome?
Ela respondeu, com a voz firme:
— Renato Monteiro.
A enfermeira anotou sem perguntar nada.
A equipe se entreolhou, mas ninguém comentou.
Naquele nome havia um silêncio cheio de história.
Era o filho de Monteiro.
E, mesmo ausente, ele estava ali — no sangue, no nome, no peso daquele momento.
Castilho não discutiu.
Quando soube, apenas acenou com a cabeça e disse:
— Que ele voe melhor do que a gente.
Voo Final:
Anos se passaram.
Renato cresceu curioso.
Obcecado por aviões.
Tinha o olhar atento da mãe, a serenidade do pai — e um tipo de leveza que só as crianças muito amadas carregam.
Nas férias, voava para Manaus visitar a avó materna, última guardiã das histórias do pai que ele nunca conheceu.
Na volta de uma dessas viagens, embarcou com ela num voo noturno.
Um trecho longo, comum, que partia do norte do país com escala em Brasília e destino final no Rio.
O avião estava cheio. Céu limpo. Tudo dentro da normalidade.
Era 29 de setembro de 2006.
Pouco depois do meio do trajeto, ainda sobrevoando o Mato Grosso, aconteceu.
Um choque.
Um instante de silêncio no rádio.
Depois, o caos que ninguém conseguiu explicar direito.
A aeronave se partiu no ar, despencando em pedaços sobre a floresta.
Não houve sobreviventes.
Renato Monteiro tinha sete anos.
E morreu abraçado à avó, conforme disseram os peritos, como se ainda estivesse sendo protegido.
Silêncio Acima das Nuvens:
Helena recebeu a notícia como quem recebe um tiro — não ouve, só sente.
Na companhia, ninguém sabia o que dizer.
Nem os amigos.
Nem Castilho.Nem ela.
O velório foi breve.
Helena não quis homenagens.
Nem discursos.Só pediu silêncio.
O caixão de Renato era pequeno demais.
As flores, brancas demais.
E o céu, claro demais para um dia de luto.
Ela enterrou o filho ao lado do pai.
Dois Monteiros.
Um que nunca pôde segurá-lo.
Outro que nunca pôde vê-lo crescer.
Castilho ficou no fundo.
Não ousou se aproximar.
Não dessa vez.
Porque não existia lugar certo pra ele naquele dia.
Nem naquele fim.
Depois que todos foram embora, Helena ficou sentada sozinha no gramado úmido, ao lado das duas lápides.
E por um longo tempo, apenas respirou.
Epílogo – Um Relato de Corredor:
Alguns anos depois, ouvi essa história no corredor de um aeroporto.
Um copiloto comentou.
Alguém confirmou.
E, aos poucos, fui ligando os pontos.
Eu me lembro de Monteiro.
Me lembro de Castilho.
Me lembro de Helena — mesmo que de longe.
Mas o que me lembro mais...
É do dia 29 de setembro de 2006.
Naquele dia, o céu foi o cenário de uma tragédia que mudou tudo pra muita gente.
Mas ali, entre os destroços, entre os nomes na lista, entre as histórias que nunca mais foram contadas...
tinha um menino chamado Renato Monteiro.
Que nasceu do luto.
E morreu no mesmo lugar de onde veio.
Porque no mundo da aviação...
nem todo pouso é suave.
E nem todo voo tem volta.
